Religião: religare e relegere. Ouvir
concentrada mente a Partita II de Bach constitui, para mim, a experiência
religiosa por excelência: o resta belecimento do vínculo sagrado com a
totalidade do universo (religare) e o retorno a uma síntese primeira, anterior
à cisão da autoconsciência e à dor de formas repartidas (relegere). Acima de
tudo que conheço, re verencio ou possa conceber, a pureza e a perfeição austera
desses sons traduzem, aos meus ouvidos, a idéia de absoluto.
O que pode
qualquer metafísica ou religião instituída, calcada no miasma de uma doutrina,
diante da verdade infinita - a espiritualidade em estado puro - que emana da
música de Bach?
Se o divino e o transcendente se rendem à força criadora do espírito humano,
então é precisamente aqui, na geometria sublime dessa arquitetura para além do
tempo e do espaço, que encontro a sua mais bela e definitiva expressão. Templo
sonoro do meu panteísmo.
Ouvir bem - estar minimamente à altura do que se
ouve - é trabalho duro, normalmente precedido de um pequeno ritual. Silêncio,
isolamento e concentração são essenciais: olhos cerrados, respiração
apaziguada, corpo na horizontal. O valor da audição depende de uma ascese espiritual
que, no cotidiano da metrópole, nem sempre pode ser desfrutada. A dádiva, muitas vezes, reside apenas em
lembrai que esse espaço-tempo do sagrado existe, ou seja, que ele está lá, ao
nosso alcance, como um elixir que nos permite escapar do circuito profano das
miudezas do mundo - a cidade em que vozes e buzinas se confundem - para ingressar
por inteiro no universo paralelo da espiritualidade atemporal de Bach.
A vida
oprime, o som liberta. Considero impossível ouvir devidamente a Partita II na
companhia de quem quer que seja.
O meu primeiro contato com a Partita II se deu
quando eu tinha 16 anos. Obra de um acaso feliz. Um amigo de escola, com quem
costumava conversar longamente sobre música e literatura, apareceu um dia
dizendo que ouvira a Ciaccona, num disco de uma coleção seriada sobre a
história da música clássica que estava sendo vendida na época em bancas de
jornal.
Ocorre que ele discorreu com tanto entusiasmo e
paixão sobre a obra que tive imediatamente curiosidade de conhecê-la. Comprei
um exemplar do fascículo poucos dias depois da nossa conversa e coloquei o
disco na pequena vitrola que tinha em meu quarto. Por maior que fosse a minha
expectativa (e confesso que cheguei a suspeitar que o meu amigo exagerava em
sua calorosíssima apreciação), como imaginar o que estava prestes a encontrar?
Naquela altura, eu já conhecia alguma coisa de música
erudita, especialmente na tradição romântica alemã, mas logo me dei conta de
que aquilo pertencia a uma outra ordem de expressão e espiritualidade. A
experiência foi arrebatadora. Como era
possível que um único instrumento apenas - as quatro cordas de um violino -
pudesse deflagrar uma arquitetura polifônica de tamanha beleza e complexidade?
Que misterioso dom de transporte era aquele, capaz de nos conduzir a um mundo
psicoacústico de formas puras e perfeitas - um mundo sem máculas e arestas e
diante do qual aquele em que nos é dado existir não passa de arremedo e
exílio? Tive a certeza instantânea de que aqueles sons me acompanharam pelo
resto da vida.
A passagem do tempo confirmou plenamente aquela
intuição juvenil. Nada me faz sentir de maneira tão clara os limites de todas
as demais formas conhecidas de expressão artística - poesia, artes plásticas,
teatro, arquitetura, romance, cinema etc. - quanto uma audição ideal da Partita
II, coroada pelo monumental quinto movimento (Ciaccona). A música permite um grau de absorção e imersão a quem a ela se entrega
que nenhuma outra arte é capaz de proporcionar. Nela apenas se pode abstrair de
tudo o que existe e mergulhar no universo paralelo da completa transcendência.
A alma
embalada pelo som quando sonha, desligada do corpo e dos demais sentidos, refaz
o mundo a seu modo - é criadora e criação de si mesma. Para onde vai o tempo
enquanto estamos mergulhados, em estado de absorta concentração, na música das
esferas de Bach? Os pouco mais de 25 minutos da Partita II bastam para
escancarar o que há de errado com a idéia de se medir e domesticar o tempo,
submetendo-o à contagem uniforme e mecânica dos relógios - o intervalo finito
demarcado por suas notas de abertura e encerramento contém em si a eternidade.
■EDUARDO GIANNETTI é sociólogo e economista formado
pela USP e Ph.D, em economia pela Universidade de Cambridge. É professor do
IBMEC São Paulo e autor de, entre outros livros, O valor do amanhã (Companhia
das Letras, 2005). Temporada Brasil 2006
J.S. BACH – Sonatas e partitas (partita II e ré
menor – BMW 1004), por Sándor Végh
FONTE: REVISTA DIAPASON – nr. 1/ 2006
Um comentário:
Amigo por onde andas? preocupa-me o teu silencio, não voltastes mais no Boas Festas e tua poesia ainda está lá enfeitando o concurso de tags, gostaria que comparecesse amanhã, 23 de dezembro na nossa ceia virtua, ficaria muito feliz. De já te desejo um natal de luz.
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