3 de dezembro de 2012

A música de minha vida


Religião: religare e relegere. Ouvir concentrada mente a Partita II de Bach constitui, para mim, a experiência religiosa por excelência: o resta belecimento do vínculo sagrado com a totalidade do universo (religare) e o retorno a uma síntese primeira, anterior à cisão da autoconsciência e à dor de formas repartidas (relegere). Acima de tudo que conheço, re verencio ou possa conceber, a pureza e a perfeição austera desses sons traduzem, aos meus ouvidos, a idéia de absoluto.
O que pode qualquer metafísica ou religião instituída, calcada no miasma de uma doutrina, diante da verdade infinita - a espiritualidade em estado puro - que emana da música de Bach? Se o divino e o transcendente se rendem à força criadora do espírito humano, então é precisamente aqui, na geometria sublime dessa arquitetura para além do tempo e do espaço, que encontro a sua mais bela e definiti­va expressão. Templo sonoro do meu panteísmo.
Ouvir bem - estar minimamente à altura do que se ouve - é trabalho duro, normalmente precedido de um pequeno ritual. Silêncio, isolamento e concentração são essenciais: olhos cerrados, respiração apaziguada, corpo na horizontal. O valor da audição depende de uma ascese espiritual que, no cotidiano da metrópole, nem sempre pode ser des­frutada. A dádiva, muitas vezes, reside apenas em lembrai que esse espaço-tempo do sagrado existe, ou seja, que ele está lá, ao nosso alcance, como um elixir que nos permite escapar do circuito profano das miudezas do mundo - a cidade em que vozes e buzinas se confundem - para in­gressar por inteiro no universo paralelo da espiritualidade atemporal de Bach.
A vida oprime, o som liberta. Conside­ro impossível ouvir devidamente a Partita II na companhia de quem quer que seja.
O meu primeiro contato com a Partita II se deu quando eu tinha 16 anos. Obra de um acaso feliz. Um amigo de escola, com quem costumava conversar longamente sobre música e literatura, apareceu um dia dizendo que ouvira a Ciaccona, num disco de uma coleção seriada sobre a história da música clássica que estava sendo vendida na época em bancas de jornal.
Ocorre que ele discorreu com tanto entusiasmo e paixão sobre a obra que tive imediatamente curiosidade de conhecê-la. Comprei um exemplar do fascículo poucos dias depois da nossa conversa e colo­quei o disco na pequena vitrola que tinha em meu quarto. Por maior que fosse a minha expectativa (e confesso que cheguei a suspeitar que o meu amigo exagerava em sua calorosíssima apreciação), como imaginar o que estava prestes a encontrar?
Naquela altura, eu já conhecia alguma coisa de mú­sica erudita, especialmente na tradição romântica alemã, mas logo me dei conta de que aquilo pertencia a uma outra ordem de expressão e espiritualidade. A experiência foi ar­rebatadora. Como era possível que um único instrumento apenas - as quatro cordas de um violino - pudesse defla­grar uma arquitetura polifônica de tamanha beleza e com­plexidade? Que misterioso dom de transporte era aquele, capaz de nos conduzir a um mundo psicoacústico de for­mas puras e perfeitas - um mundo sem máculas e arestas e diante do qual aquele em que nos é dado existir não pas­sa de arremedo e exílio? Tive a certeza instantânea de que aqueles sons me acompanharam pelo resto da vida.
A passagem do tempo confirmou plenamente aquela intuição juvenil. Nada me faz sentir de maneira tão clara os limites de todas as demais formas conhecidas de expressão artística - poesia, artes plásticas, teatro, arquitetura, roman­ce, cinema etc. - quanto uma audição ideal da Partita II, coroada pelo monumental quinto movimento (Ciaccona). A música permite um grau de absorção e imersão a quem a ela se entrega que nenhuma outra arte é capaz de proporcionar. Nela apenas se pode abstrair de tudo o que existe e mergu­lhar no universo paralelo da completa transcendência.
A alma embalada pelo som quando sonha, desligada do corpo e dos demais sentidos, refaz o mundo a seu modo - é criadora e criação de si mesma. Para onde vai o tem­po enquanto estamos mergulhados, em estado de absorta concentração, na música das esferas de Bach? Os pouco mais de 25 minutos da Partita II bastam para escancarar o que há de errado com a idéia de se medir e domesticar o tempo, submetendo-o à contagem uniforme e mecânica dos relógios - o intervalo finito demarcado por suas notas de abertura e encerramento contém em si a eternidade.
■EDUARDO GIANNETTI é sociólogo e economista for­mado pela USP e Ph.D, em economia pela Universidade de Cambridge. É professor do IBMEC São Paulo e autor de, entre outros livros, O valor do amanhã (Companhia das Letras, 2005). Temporada Brasil 2006
J.S. BACH – Sonatas e partitas (partita II e ré menor – BMW 1004), por Sándor Végh
FONTE: REVISTA DIAPASON – nr. 1/ 2006